A Minha Bicicleta e Eu ou Kafka Revisitado

Costumam ser "apenas" uns riscos, uns vidros partidos, uns pneus furados. Nem é notícia. Ontem foram cocktails molotov e foi notícia.

Mas o que galvanizou muita gente foi o escândalo de os carros serem Mercedes. Um comprado estragado e recuperado pelo seu proprietário, e outro um vulgar utilitário.
Mas que é lá isso? Ainda assim, são Mercedes! E professor não pode ter Mercedes!

Foi o bom e o bonito! Foi alegria, foguetório e festa rija! Atreveram-se a comprar Mercedes? Pois tomem lá! E a Mercedes sabia que havia professores com carros da sua marca? Eis aqui um aspecto a ter atenção... A Mercedes deve ver a quem vende. cada comprador deve assinar uma declaração comprometendo-se a não vender o seu Mercedes a um professor!

Ontem, e pela primeira vez na minha vida, referi-me ao facto de que não tenho carro. Tenho três bocas para sustentar, o meu ordenado ronda os 1400 euros após 25 anos de serviço e com profissionalização e licenciatura a sério. Não me queixo. Nunca me queixei. São opções e condicionalismos da vida de cada um e só a cada um dizem respeito. Eu não posso ter carro. No big deal!

Quando tinha carro, habituei-me a ouvir alguns comentários de "gozo" dos alunos acerca da minha "farronca velha". No auge dos subsídios da UE para tudo e mais alguma coisa e em especial para a agricultura, os pais dos alunos e os alunos maiores "apresentavam-se com grandes máquinas".

O novo-riquismo, que anda sempre de braço dado com a chamada "cultura da pobreza", fazia os meus alunos verem-me como "menos" que os pais e os irmãos. E diziam-no:

- Ó setor, quanto é que ganha por mês?... O meu pai faz uma sementeira de girassol, não o apanha, e o subsídio que lhe dão é mais do que você ganha num ano!

Se era difícil fazer-me respeitar andando numa "farronca velha", mais difícil passou a ser quando a troquei por uma bicicleta. A evolução da modéstia dos meus meios de transporte acompanha a evolução da falta de respeito pelos professores e pelos adultos em geral.

Acabei por deixar a bicicleta em casa. Moro numa cidade pequena, posso vir a pé, e por morar numa cidade pequena onde toda a gente me conhece, sentia-me bastante embaraçado por causa das gritarias que alguns alunos faziam quando me viam passar. Como se eu fosse uma ave rara, uma espécie de palhaço do circo, havia gritos e uivos quando me viam a pedalar.

- Eh, setor!!!! Olhó gimbras!!!!

Bocas sortidas, um verdadeiro atentado à dignidade de uma pessoa com mais que idade de ser pai deles, o povoléu todo a olhar, e certamente a censurar o pressuposto (erradíssimo) de eu lhes dar eventualmente confiança para tal.

E como parar os uivos?

Fora de questão, pelo ridículo, ir à polícia queixar-me de uivos, bocas e asneiredo à minha passagem.

Fora de questão enfiar uma bofetada num. Todo e qualquer cidadão nacional pode dar uma bofetada num energúmeno com idade de ser seu neto que se atreva a fazer algo semelhante. Professor não pode. Era logo processo disciplinar, queixas dos pais, tribunal, ajustes de contas, etc..

Fora de questão "vingar-me" nas notas ou em outras represálias na escola. E nem é preciso explicar porquê!
De maneiras que venho a pé. Não corro o risco de incendiarem a minha bicicleta. Só a mim, se calhar, um dia destes...

Mas que se cale tudo quanto Franz Kafka canta, quando a opinião pública se alevanta:

O professor não tem dinheiro para um carro?

É um vencido, é um medíocre, como é que se pode dar ao respeito? É um morto de fome que só está no ensino porque não tem mais nada...

O professor tem um Mercedes?

É um malandro! É por causa de ele ter um Mercedes que eu ganho só 800 euros por mês! Como é que assim se pode dar ao respeito?

Quando a minha vida melhorar, quando os problemas que motivam o actual aperto financeiro da minha família, conto fazer um pequeno inquérito junto da população para saber que carro devo comprar, e se novo ou usado. Não escondo que adorava ter um Volkswagen Golf com pouca quilometragem. Pode ser?...

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