O Suplício




Entrando no seu quarto, um pequeno e modesto quarto, mobilado com uma banca, poucas cadeiras e uma estante, cheia de livros, Augusto respirou. 

Era ali o seu lugar de descanso; a escola era em outra casa vizinha. Nesta não havia, a amargurar-lhe as horas do repouso, vestígios que lhe recordassem as do suplício. 

Leitor filantropo, que, abrasado em santo amor da humanidade, só entrevês delícias na tarefa do ensino, e fazes deste vigiar e encaminhar o espírito infantil, que desabrocha e respira pela primeira vez no fecundo ambiente da ciência, um sedutor quadro de fantasia, perdoa-me a palavra «suplício», de que me servi, e perdoa ainda mais ao carácter de Augusto o ter saído exata a expressão, que te feriu os humanitários instintos. 

Eu bem sei que é uma sublime missão a do mestre, e que é uma graciosa e amorável idade a da infância; e poucos melhor do que Augusto possuíam presente o ideal de uma e amenizavam à outra com branduras os amargores do penoso tirocínio; mas que importa? Nem por isso é menos real o suplício. A cultura dos espíritos é como a cultura das terras. O lavrador exulta, estremece de prazer, vendo pulular do solo, arado e semeado de pouco, os rebentos do grão que o calor fez germinar, envolverem-se as folhas, estenderem-se e enflorarem-se os ramos, penderem os frutos e colorirem-se das tintas da madureza; mas, enquanto vergado, coberto de suor, arquejante, se afadiga a arrotear o terreno duro, e quem sabe se ingrato aos seus cuidados, muita vez lhe falece o alento, e, se olha de vez em quando para o Céu, não é para lhe agradecer com risos os gozos que ele lhe dá; mas para lhe pedir, com lágrimas, a força que lhe mingua. 

De igual modo, se é grato ao cultor das inteligências, vê-las desenvolver, florir, frutificar; árdua, ímproba, desesperadora é muita vez a tarefa da sua primeira educação. É mister possuir um grande tesouro de ideal, para que o suave e risonho tipo, que da infância concebemos, não se transtorne, na fantasia destas vítimas dela, em não sei que figura diabólica e maligna, que lhes envenena todos os momentos de alegria. 

Além disso, o pobre professor de instrução primária, sobre quem pesam os mais fastidiosos encargos da instrução, não pode ser comparado absolutamente ao agricultor do nosso símile; é antes o jornaleiro contratado por magro salário, para, à força de braço, lavrar o solo, donde, mais tarde, romperá a vegetação, que ele não terá de ver e que a outros concederá os gozos e o benefício. Venceu também o humilde professor, e por o mesmo preço que o jornaleiro, que não vão mais longe com ele as liberalidades dos nossos governos, venceu as maiores cruezas do magistério, mas não terá também o resultado das suas fadigas. 

Fogem-lhe as inteligências que educou, justamente quando com mais amor as devia contemplar, e, se o destino reserva a qualquer dessas inteligências um futuro de glórias, raro é que volvam um olhar agradecido para as humildes mãos que as sustentaram, quando ainda não tinham asas para voar. Quase todos os grandes homens cometem esta ingratidão. Falam nos seus mestres de filosofia, de matemática, de literatura, e não salvam do esquecimento, pronunciando-o, o nome do primeiro mestre, do que os ensinou a ler. 

Considerações da ordem das que acabámos de fazer, quero acreditar, não são as que mais preocupam o pensamento da maioria desses pobres diabos, que, por noventa mil réis anuais, se deixaram ligar à atafona do ensino primário da aldeia; porém, devem ser, além das misérias de tão mesquinha sorte, causas de grandes torturas morais para alguma alma de instintos e aspirações mais elevadas, que o destino amarrasse, como por escárnio, a este poste de expiação. 

Nesse caso estava por certo a alma de Augusto. No vasto mundo, que os livros abrem às imaginações, que na vida real não encontram deleite, refugiava-se ele nas horas em que as suas obrigações lhe permitiam respirar.


Júlio Dinis, "A Morgadinha dos Canaviais", capítulo 8.

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